NÓS e eles

Belma Polat tinha uma missão importante na empresa de mídia que trabalhava. Na verdade, um grande conglomerado com empresa de TV, rádio online, portais, etc. Ela ficou incumbida de entender o ódio que estava fervilhando na Turquia. Como estavam atravessando um momento de eleições políticas, a sensação de que o ódio estava em todo o lugar era maior.

Mas Belma não era uma jornalista de carreira, na verdade ela era o suporte de Big Data para um grupo de jornalistas de muita projeção. Era a mais nova do grupo, e fazia o primeiro trabalho realmente interessante na empresa, algo que poderia lhe dar uma ótima reputação e participar de matérias de porte na mídia.

O trabalho de grupo de Belma era se utilizar da ampla base de dados da empresa, em conjunto com estatísticas contratadas e bases externas, para no final gerar um relatório sobre o ódio no país.

Belma sabia que esse não era um problema somente de seu país, várias nações nas Américas, na Europa, em todo o mundo passavam por isso.

Uma questão simples, um trabalho gigante. A resposta não poderia ser pontual, ligada a posições polarizadas de uma eleição, questão social, esportiva ou política. Precisava entender as raízes históricas, e ela entendeu que precisava navegar um pouquinho em filosofia, sociologia, e claro, a própria história.

Ela tinha o que consideravam por lá muito tempo – 5 dias para produzir o resultado!

Belma juntou muitos dados, mas não conseguia fazer correlações do ódio com as polarizações de ideias num contexto universal. Os resultados eram claros quando se julgava caso a caso, e ela pode entender o que leva as pessoas preferirem esta ou aquela ideologia política, esta ou aquela religião, esta ou aquela opinião sobre eventos de primeira página da mídia. Porém, tudo ficava turvo ao se extrapolar para o ódio sem a variável do evento, do contexto, do assunto em si.

O ódio estava presente em todo ser humano? Aquilo levava Belma a pesquisas religiosas e filosóficas, porém não respondia à pergunta para dar conteúdo ao relatório, via uma dedução estruturada e depois escrita.

Os dados demográficos, as estatísticas de opiniões pré-existentes a ajudavam bastante, isto em si já tinha sido um trabalho bonito, mas ela sentia que faltava a cereja do bolo, o elo que uniria aquilo tudo. Chegou o último dia.

Belma estava exausta com aquele trabalho feito sem pausa. Elétrica, confessou à família que temia por um desfecho incompleto para seu trabalho. Ela resolveu parar um pouco e visitar seu avô, que também era um vizinho de Belma e como sempre ele estava cuidando de sua motocicleta na garagem do seu pequeno sobrado.

O avô era uma espécie de hippie fora da moda, mas ela o adorava. Ele tinha uma grande característica—não julgava ninguém, podia-se dizer. Ao contar o seu dilema, seu avô não deu nenhum conselho como sempre, apenas disse:

“Você assim, não vai chegar a nenhum lugar. Está inquieta. Vejo na sua face. Que tal apenas fazer algo leve, olhar as plantas, escutar a música…”

Naquele momento, a playlist de seu avô passou para a próxima música, e é claro, tudo girava em torno do gênero classical rock naquela garagem. Começou a tocar a música US AND THEM do grupo Pink Floyd. Um hit do início da década de 70, a cara do seu avô.

Ela escutava a letra da música:

“Us and them
And after all we’re only ordinary men
Me and you
God only knows
It’s not what we would choose to do

Black and blue
And who knows which is which and who is who
Up and down
And in the end it’s only round ‘n round
Haven’t you heard it’s a battle of words”

Belma sorriu. Seria um insight graças ao avô e ao Pink Floyd?

No final, será que tudo se tratava de “Us and Them”? Talvez.

O sectarismo era histórico e acompanhava todas as polarizações. Com o tempo, já não importava o que um grupo acreditava, isso era mutante para indivíduos do mesmo segmento de dados. Mas uma vez estabelecidas as verdades internas, surgia um sentimento de “NÓS”, que de jeito nenhum sentiriam como “Eles”. A partir daí agregações do que era “bom” recaía sobre o “nós”, e o que era ruim sobre o “Eles”. Cada um montava quase de forma inconsciente, um arcabouço de argumentos para toda e qualquer defesa da polarização, a continuidade do ódio.

Isso se dava com tal “violência” psíquica, que o amor e ódio entravam pesados na questão. Não era mais uma opinião lógica, um argumento técnico, jamais. Era, contudo, uma defesa do fundo das entranhas de cada ser. Quem defendesse o que não acreditava era agora quase um inimigo, alguém sem boa-vontade, eram “Eles”.

Estava forjada a intolerância, e com ela, o ódio.

Belma sabia que era um insight, sim quem sabe, apenas um devaneio. Porém, ela teve uma certeza interna que aquele era o caminho. Não sabia se teria sucesso, pois precisava embasar tudo aquilo com dados, muitos dados, muitos modelos. Mas aquelas horas que restavam de trabalho duro era dentro da sua expertise.

Naquele momento, seu avô a olhou e percebeu a mudança em sua expressão. Ela lhe deu um beijo e tocou na moto, dizendo… “Linda”. Ela partiu deixando um sorriso no avô, que continuou sua manutenção e ouvindo sua playlist.

Main Imagem at pixabay.com from “999theone”.


Repost do Original “Us and Them” neste blog em 13/nov/2018.


                     


 

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